quarta-feira, 24 de julho de 2019




  

TEXTO: Felicidade clandestina


    Ela  era  gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".
        Mas que talento tinha para a cruelade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
        Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
        Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
        Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
        No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte.
        Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.
        E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. As vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
        Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
        E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia.
        Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
        Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
        Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar ... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
        Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
        Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.


LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
                                                                           

     

01 – Que pensamentos vêm  a sua mente  ao ler o  título  “Felicidade clandestina”?
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02 – O texto é narrativo, pois há o relato de certos fatos que ocorreram em uma determinada época e lugar. Quem conta a história e em que pessoa?
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03 -  Quais são as personagens principais da história?
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04 – Felicidade clandestina é um conto (narrativa curta com poucas personagens e lugar delimitado). Qual é a situação apresentada no início do texto?
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05 – O que faz com que  a situação inicial se modifique, instaurando o conflito?
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06 – Como se desenvolve a situação inicial da narrativa?
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07 -  Embora a filha do dono de livraria não tivesse muitas qualidades, algo a fazia parecer superior aos olhos da narradora.  O que era?
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08 – Em um dado momento, a situação se agrava, chegando-se ao clímax (maior tensão) na história. Por quê?
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09 – Estabelece-se uma nova situação, o desfecho do conto. Que situação seria essa?
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10 – Uma das colegas da sala da narradora tinha acesso fácil aos livros, isso porque o pai dela era dono da livraria. Por que ela não presenteava as colegas, nos aniversários, com livros?
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11– A atitude vingativa da colega foi se intensificando com o tempo?
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12 – Leia: “Como casualmente, informou-me que possuía Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato ...”  O que o emprego da expressão em destaque indica?
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13 – Depois de ter consciência dos fatos e ainda profundamente surpresa, a mãe tomou suas decisões. Com base no comportamento da mãe, que se pode dizer sobre o relacionamento dela com a filha?
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14 – As frequentes visitas à casa da colega de escola, em busca do livro tão cobiçado, despertaram a atenção da mãe da garota. Qual foi a consequência da tortura executada tão lentamente?
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15 - Por que  a narradora fingia que não sabia  onde tinha guardado  o livro e depois “achava-o”? 
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16 - No conto, qual é a felicidade clandestina que a narradora experimenta?
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17 - Pode-se sintetizar o tema do conto “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector, como:__________________________________
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18 -  Sobre os elementos do conto, responda:

a)     Tipo de narrador e foco narrativo: 
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b)     Onde acontecem os fatos narrados?
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c)     Tipo de discurso:­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­___________________________________
d)     Variedade linguística empregada: 
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e)     Protagonista:_____________________________________
f)     Antagonista:______________________________________
g)     Tempo verbal predominante:__________________________
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19 - Escreva um pequeno texto narrando uma situação em que você tenha vivido algo semelhante à menina do conto, ou seja, desejar muito uma coisa e passar por situações desconfortáveis para consegui-la. Caso não tenha acontecido nada parecido com você, invente uma situação semelhante.


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Gabarito

01 – Resposta pessoal.
02 –  Narrador - personagem, em 1ª pessoa, uma menina que sonha ler Reinações de Narizinho.
03 - A narradora e a menina filha do dono de livraria.
04 – Uma menina que gosta de ler tem uma amiga muito perversa que é filha de dono de uma livraria.
05 –  
A menina que gosta de ler livros é informada pela filha do dono da livraria de que ela possuía Reinações de Narizinho, livro muito desejado pela narradora.
06 –  A dona do livro começa a torturar a narradora sempre adiando o empréstimo do livro.
07 - O fato do pai dela ser dono de livraria, pois isso possibilitava a ela ter os livros que quisesse.
08 – Porque a mãe da dona do livro passa a interferir na história.
09 –  A menina fica com o livro emprestado por tempo indeterminado.
10 – Porque ela não desse importância aos livros, pois não daria  essa alegria de dá livros a quem gostava deles.
11 – Sim, porque a filha do dono da livraria começou a planejar certas situações cruéis, não querendo limitar as humilhações já impostas a colega.
12 – A narradora reconheceu o fingimento da filha do dono da livraria, pois ela tinha intenção de iludir e de torturar a narradora.
13 – A filha era ruim, com atitudes que a mãe não concordava, deixando-a surpresa.
14 –A dona do livro emprestou por tempo indeterminado o livro a narradora.
15 - Porque isso aumentava o prazer dela de se ver com o  livro nas mãos.
16 – A felicidade de ter acesso à leitura, aos livros, que para ela era clandestina, pois não tinha condições financeiras para possuí-los. Essa foi à felicidade clandestina dela. Fazia questão de “esquecer” que estava com o livro para depois ter a “surpresa” de achá-lo.
17 – Uma aprendizagem amorosa.
18 -  a)  Narrador personagem. Foco narrativo em primeira pessoa.
        b) Nas ruas do Recife, na frente da casa da filha do dono de livraria e na casa da narradora.
        c)  Discurso indireto livre.
        d)  A norma padrão formal.
        e)  A narradora.
        f)  A filha do dono de livraria.
        g)  Pretérito perfeito e pretérito imperfeito.
19 – Resposta pessoal.




Revendo

OS ELEMENTOS DA NARRATIVA 


          A narração é um modo de organização de texto cujo conteúdo está vinculado, em geral, às ações ou aos acontecimentos contados por um narrador.

          Os  elementos da narrativa são:

PERSONAGEM –  O personagem da narrativa pode ser uma pessoa com características reais ou imaginárias, ou pode ser , ainda, a personificação de animais, ide ias, forças da natureza.  Quanto à sua importância na trama os personagens podem ser principais ou secundários. O personagem principal de uma narrativa é chamado de protagonista (principal ator) e, dependendo do escritor e do estilo de época, pode ser apresentado de maneira mais idealizada ou mais próxima ao real. O protagonista, normalmente, vai se defrontar com o antagonista – o que luta contra algo ou alguém. Observe que as palavras protagonista/antagonista já denunciam, em sua significação, o conflito. Também há a presença dos adjuvantes ou coadjuvantes, que são os personagens secundários que também exercem papéis essenciais na história.

NARRADOR - O narrador é elemento fundamental para o sucesso do texto, pois esse é o dono da voz, o que conta os fatos e seu desenvolvimento. Atua como intermediário entre a ação narrada e o leitor. Tipos: narrador-personagem: conta a história na qual é participante. A história é contada em 1ª pessoa e ele é narrador e personagem ao mesmo tempo;  narrador-observador: narrador em 3ª pessoa que conta a história como alguém que observa tudo o que acontece, transmitindo os fatos ao leitor;  narrador-onisciente: sabe todas as informações sobre o enredo e as personagens, revelando seus pensamentos e sentimentos íntimos.  Normalmente ele utiliza o discurso indireto livre em suas narrativas.

Foco narrativo - É a perspectiva através da qual o narrador relata os acontecimentos da narrativa. Pode-se  afirmar que é, ao lado do enredo, a principal definição que o autor faz antes de iniciar a narração (O autor precisa definir, antes de começar a escrever a história, que tipo de narrador terá o texto).

Foco narrativo de 3ª pessoa: o narrador não participa ativamente dos acontecimentos. Nas narrativas em 3ª pessoa, o narrador pode ser onisciente ou observador. O  narrador onisciente conhece toda a história que relata e até os pensamentos dos personagens envolvidos na história; o narrador observador não conhece toda a história, apenas relata os fatos à medida que eles vão acontecendo.

Foco narrativo de 1ª pessoa: entra em cena o narrador-personagem. Nas narrativas em 1ª pessoa, a história é contada a partir do ponto de vista do narrador e, assim, fica condicionada à visão que ele tem da trama.
 
ENREDO -  Enredo, também chamado de intriga, trama ou argumento, é o elemento que dá sequência a uma história. Isso porque é em torno dele que se desenvolvem todos os acontecimentos de uma narrativa. Ele é dividido em algumas partes:
• Situação inicial: é quando o autor apresenta os personagens e mostra o tempo e o espaço em que estão inseridos, geralmente logo na introdução.
• Estabelecimento de um conflito: um acontecimento é responsável por modificar a situação inicial dos personagens, exigindo algum tipo de ação. O conflito talvez seja a parte elementar de toda a história, pois é ele que confere motivação ao leitor/ouvinte, instigando-o a se envolver cada vez mais com a história.
• Desenvolvimento:  ao longo desta seção, o autor conta o que os personagens fizeram para tentar solucionar o conflito.
• Clímax: depois de diversas ações dos personagens, a narrativa é levada a um ponto de alta tensão ou emoção, uma espécie de “encruzilhada literária” que exige uma decisão ou desfecho;
• Desfecho: é a parte da narrativa que mostra a solução para o conflito.  Lembrando que esse final poderá muitas vezes nos surpreender, revelando-se como trágico, cômico, triste, alegre, entre outras formas.

ESPAÇO - Local onde as personagens circulam, onde as ações se realizam. Podendo ser físico/geográfico e social.
       Espaço físico: É o lugar onde acontecem os fatos.
    Espaço social: É o espaço relativo às condições socioeconômicas, morais e psicológicas que dizem respeito às personagens.

TEMPO - O tempo em uma narrativa é o “marco temporal” das ações que estão sendo contadas. É a indicação de quando essas ações aconteceram. As narrativas podem basear-se num tempo cronológico, ou seja, aquele medido ora pela natureza (a passagem do dia para a noite), ora por mecanismos de medição temporal (como o relógio ou a divisão em anos, meses, semanas, etc.) Mas também pode-se  observar o tempo psicológico, que é aquele que não se pode medir de uma forma racional, pois se trata de um tempo que pertence ao mundo interior do personagem. O tempo psicológico é marcado pelas sensações vivenciadas pelo personagem em relação a um determinado momento temporal: um minuto pode ter uma duração de dez anos ou, ao contrário, dez anos podem ter a duração de um minuto.






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